domingo, 28 de agosto de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 33

No último sábado(dia 27 de agosto) a primeira sessão do ciclo de filmes Realismo Socialista, ocorrida no MIS Campinas, desencadeou um debate que levantou questões urgentes para a militância cultural. Ainda que a discussão em torno do filme Chapaev(1934) estivesse restrita  a um pequenino grupo de cinéfilos e militantes, o fato é que as dificuldades e as limitações políticas de grande parte da esquerda brasileira, foram colocadas em questão.
 O filme exibido mereceu por parte dos integrantes do nosso blog, uma abordagem histórica: Chapaev traz em seu enredo a figura de um líder bolchevique, que teve uma importante participação no Exército Vermelho durante a época da Guerra Civil na Rússia(1918-1921). Passando para o debate mais propriamente estético, procurou-se destacar o retrocesso artístico de uma proposta cinematográfica que interrompeu bruscamente a radicalidade dos vanguardistas que representavam a arte soviética. Negando as contribuições do Construtivismo russo, corrente de vanguarda que encabeçou o cinema soviético dos anos 20, o longa em questão adulterou a partir da sua fotografia acadêmica uma série de aspectos políticos do período histórico em que o filme se passa: uma narrativa calcada no melodrama convinha com os interesses burocráticos do stalinismo. A questão do melodrama foi o aspecto do debate que acionou as limitações estéticas da esquerda hoje: a estrutura melodramática ainda pauta o gosto e a narrativa de várias iniciativas da esquerda.
 Visto que o Realismo Socialista não apresentou-se como corrente estética disposta a debater com outras tendências artísticas do período, mas como expressão cultural da política stalinista que padronizava e sufocava as formas de expressão, foi colocado em questão no nosso primeiro debate do ciclo, o seguinte problema: até que ponto os estragos no jdanovismo ainda se fazem presentes, mesmo que indiretamente, na propaganda e na linguagem das organizações socialistas? Voltando a questão do melodrama, o fato é que narrativas que engrandecem a figura do " herói trabalhador ", ocultando o movimento dialético no plano da criação, resumem a tônica das experiências culturais de inúmeros militantes. Ainda que vários destes não sejam stalinistas, apresentando-se inclusive como críticos da política stalinista, o que impera é a preferência por uma estética que tanto no audiovisual quanto na arte gráfica , ainda bebe numa estrutura de linguagem que é burguesa dos pés à cabeça.
  Mas o grande problema debatido por nós foi exatamente a ausência de debates culturais entre militantes. Ao invés de participarem de debates culturais em espaços públicos, muitos militantes são subordinados a um imediatismo político que atende tão somente a uma visão economicista da realidade.Evidentemente que num momento marcado pelas eleições municipais, as energias de muitas organizações volta-se para a luta política. Isto não só é compreensível, como necessário diante de um cenário político tão conservador. Porém, como proporcionar o encontro entre diferentes correntes da esquerda para se debater arte revolucionária? Isto também não faria parte da luta política? Certamente existem dirigentes que sabem da importância da cultura: é com eles que contamos para estimular a militância para debater as questões estéticas.
 Para fechar esta edição do nosso boletim, caberia ainda uma indagação que ficou sem resposta, ou melhor, que exige de todos nós a construção de uma resposta: diante das formas sofisticadas de alienação promovidas pela cultura de massa, como a esquerda pode elaborar, a partir das históricas referências artísticas, formas de comunicação que atinjam um público mais amplo? Como o leitor pode observar esta edição 33, a exemplo da edição 32, é marcada por várias perguntas. Pois é, estamos todos quebrando a cabeça com estas questões. Estamos todos tentando contribuir com o debate em torno da necessidade da arte revolucionária.

domingo, 21 de agosto de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 32

Convidamos a todos os cinéfilos e militantes de esquerda a comparecerem no ciclo de filmes Realismo Socialista , no Museu da Imagem e do Som da cidade de Campinas. Como já vem sendo divulgado aqui, o ciclo terá seu início no próximo dia 27 de agosto. Trata-se de um ciclo mensal: avisaremos neste mesmo blog as datas e os títulos dos filmes que serão exibidos. Abriremos no próximo sábado com o longa Chapaev, de 1934,  dirigido por Georgii Vasilyev. A sessão terá seu início às 16 h, lembrando que após o filme será realizado um debate sobre o mesmo. É importante que se diga que no debate os espectadores não apenas constroem, a partir de diferentes pontos de vista, o significado dos filmes. O debate é um momento de participação na vida cultural da polis. Neste ciclo em especial, faremos uma reflexão sobre a situação do cinema e das artes na União Soviética das décadas de 30 e 40.
 As questões estéticas, indissociáveis dos fatores políticos, devem levantar problemas/questões que nos ajudam a entender quais seriam as peculiaridades do Realismo Socialista. A partir das obras representativas deste modelo estético, acabamos por nos perguntar por que os ditos representantes de um governo operário, durante os anos do stalinismo, foram tão reacionários em arte? Acreditamos que a resposta passa exatamente pelo problema da burocracia stalinista: se a revolução, que deve emancipar os trabalhadores em todos os sentidos, não é entendida no campo da arte, ela não pode ser entendida no campo político: um modelo estético que anula as contradições da realidade e sufoca a criação, condiz com os interesses de um governo autoritário, incapaz de assegurar o desenvolvimento de uma cultura revolucionária.
 O stalinismo concebeu a arte como uma força tarefa: enquanto " engenheiros de almas ", os escritores e artistas não criam mas executam o que o governo exige. Mas que alma está sendo construída? A partir desta pergunta surgem outras perguntas:

1- O que diferencia um artista de um burocrata?

2- Como o gosto popular e a necessidade de inovação formal podem coexistir num filme?

3- Será que uma obra de arte deve ser fiscalizada por " revolucionários "?

4- Um artista pode ocultar em sua obra um ponto de vista reacionário?

5- Cabe a um partido representante do proletariado debater ou censurar?

6- Será que basta substituir o herói burguês por um suposto herói proletário?

7- Quais seriam as particularidades históricas da criação artística num Estado operário?

Convidamos os militantes de esquerda a debaterem conosco estas perguntas.

domingo, 14 de agosto de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 31

Conceituar o que foi, o que talvez seja e o que pode ser arte revolucionária, é uma ação intelectual fundamentada no fato de que a criação artística é um ato transformador, inevitavelmente ligado(em sintonia) com um projeto político anticapitalista. Este posicionamento insere a dimensão estética numa perspectiva que julga o conhecimento como algo destinado a provocar transformações na consciência. No Brasil de hoje isso chega a soar como algo fora da lei. Não é pra menos: uma enxurrada conservadora procura não apenas despolitizar os contextos em que se produz e debate arte(escolas, universidades, centros culturais, etc) mas demonizar ou até mesmo criminalizar artistas e intelectuais que não aceitam um sistema baseado na exploração e na alienação. É exatamente este contexto reacionário que nos obriga a refletirmos sobre os erros históricos da esquerda, ou pelo menos da esquerda que historicamente apresentou-se como majoritária.
  No campo artístico, estamos propondo uma reflexão sobre os erros do Realismo Socialista, exatamente porque a nova geração de militantes deve formar suas convicções estéticas numa perspectiva oposta a do jdanovismo . O Realismo Socialista não é nem realista e nem socialista. Não é realista porque suprime as contradições da realidade em prol de uma visão folhetinesca, de um discurso nacionalista que exalta de modo idealista o proletariado e os feitos de uma direção política atrelada ou próxima ao stalinismo. Não é socialista porque a arte socialista além de não existir( e nem poderia surgir num passe de mágica) não pode ser monolítica, mas como frisamos na edição anterior, deve ser necessariamente plural. Portanto colocar o jdanovismo em questão não significa chutar cachorro morto, mas estudar uma produção que nos ensina a entender o que não é arte revolucionária. Precisamos deste juízo crítico para lutar, até porque o clima político no nosso país tem levantado o que existe de pior no pensamento conservador.
Enquanto os militantes de esquerda não debaterem seriamente e em larga escala questões artísticas, a cultura torna-se um espaço facilmente conquistado pela direita. Truculência somada aos clássicos delírios direitistas, resultam hoje em teorias da conspiração tais como o chamado " marxismo cultural "(esta expressão designa uma nova paranoia anticomunista: a cultura estaria sendo manipulada por comunistas " infiltrados " nas escolas, nos meios de comunicação, nos movimentos sociais, etc). Sem dúvida é muito fácil rebater pseudo-teorias como essa: o marxismo não manipula, não age às escondidas,  mas procura esclarecer, debater e transformar uma sociedade cujos problemas(fome, racismo, homofobia, intolerância, desemprego, etc) não foram criados por comunistas mas por capitalistas. Porém, o debate estético na esquerda ainda demonstra-se, salvo alguns poucos exemplos, muito rarefeito.
 Não se pode confundir arte revolucionária com fórmulas que retiram o movimento dialético da narrativa(literária ou cinematográfica) e reprimem pesquisas estéticas(na música e na pintura, por exemplo). Defender a liberdade artística é o oposto do liberalismo porque uma arte livre é aquela que capta pela antena da sensibilidade as contradições da sociedade capitalista. Os interesses históricos da classe trabalhadora exigem do artista uma entrega total, um espírito de aventura que busca novas experiências. Mas petrificando a expressão, o Realismo Socialista impossibilita todos os voos poéticos. No século passado isto foi claro: o suicídio de Maiakóvski, o enfarto de Eisenstein, o ostracismo de Vertov, a morte de Meyerhold, as calúnias que os surrealistas sofreram, a repressão da qual escritores como Patrícia Galvão foram alvo, são exemplos históricos que revelam os danos que o jdanovismo trouxe para as forças progressistas da arte.
  Se estamos dispostos a debater os erros do jdanovismo não é para estimular pesquisas de escaninho. Nosso objetivo é realizar  uma crítica que visa contribuir com a qualidade do debate estético na esquerda. Isto serve para nos fortalecermos num momento em que a direita, cada vez mais, deita e rola no campo da cultura.

domingo, 7 de agosto de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 30

Enquanto aquecemos os motores para a mostra de filmes Realismo Socialista, no MIS Campinas(a mostra terá seu início no próximo dia 27 de agosto), se faz necessário denunciar as falsas relações entre arte e marxismo estabelecidas historicamente pelos stalinistas. Tal denúncia pode não ser novidade para muitos marxistas esclarecidos, mas é sempre importante salientarmos para pessoas não totalmente familiarizadas com questões estéticas, que o Realismo Socialista não é arte revolucionária. Esta afirmação é a posição estética/política assumida pelo nosso blog, deixando claro que durante a mostra de filmes, estaremos abertos ao debate/diálogo junto aqueles que inclusive discordam de nós.
 Mas não seria exatamente a associação entre arte revolucionária e Realismo Socialista, que encontramos em documentários, reportagens e artigos fartamente difundidos pela mídia capitalista? Pois é, o esforço ideológico da intelectualidade reacionária, no Brasil e no mundo, funda-se em falsos princípios políticos: a tara liberal procura associar  marxismo com totalitarismo, arte de esquerda com propaganda rasteira. Estamos diante de um momento que exige definições, correções, conceituações. Visto que a produção cultural atrelada aos interesses e ao universo de valores do capitalismo, não consegue ocultar totalmente a miséria e a alienação, os discursos sobre arte revolucionária fazem do território estético um espaço que sonha ativamente com a construção de uma outra realidade histórica.
 Não existem decretos para a arte revolucionária. Entendida como um conjunto de experiências artísticas plurais que desaguam na condenação da civilização capitalista, a arte revolucionária não pode existir a mando de nenhuma estrutura burocrática. A diferença básica entre um artista militante e um garoto de recados de fórmulas artísticas, está na necessária e relativa autonomia do primeiro. A necessidade de afirmação humana que reside no impulso artístico criador não pode, a custo de neutralizar seu poder de fogo contestador, ser o cumprimento de uma ordem que visa beneficiar um órgão centralizador de poder. Talvez  a confusão que muitos fazem(e o proveito que muitos tiram desta confusão) esteja numa suposta centralização da cultura realizada pelo socialismo. Muito pelo contrário: o socialismo deve garantir a estrutura material necessária para uma arte livre, para uma cultura libertária, descentralizada. O comando interior do artista não apenas leva ao protesto contra o sistema capitalista, hostil à criação artística(aspecto este destacado por Marx), mas exige(quando o artista possui consciência política) uma alternativa política. O respeito às leis artísticas culminam na necessidade de uma outra organização política: é o socialismo, e não suas deformações burocráticas, que pode possibilitar o desenvolvimento das potencialidades humanas, da criação. Não é servindo de propaganda, como foi o caso do Realismo Socialista, que a arte contribui com a necessária transformação política.  
 O desconhecimento da dinâmica artística, ou pelo menos da maneira como o suporte técnico articula-se com uma expressão que revela a denúncia e a rebelião contra a presente ordem social, acarreta quase sempre no desencontro entre forma e conteúdo. O direito à pesquisa artística é um pressuposto para que a arte não se feche em uma linguagem que carrega as estruturas e os vícios da cultura dominante. Ou seja, não existe arte revolucionária com happy end, com uma simplificação maniqueísta tão ao gosto da indústria cultural. Contrariando a assertiva do poeta Maiakóvski, o Realismo Socialista desconsidera a forma revolucionária e gera um conteúdo que também não é revolucionário. Entretanto, é dentro da tensão entre elementos jdanovistas e elementos de vanguarda, que encontramos, como foi dito na edição 29, algumas manifestações artísticas que devem ser examinadas/problematizadas: cumpre a nós debatermos até que ponto tais obras cumprem um papel político progressista e até que ponto tornam-se expressões das imposições burocráticas do jdanovismo. Trata-se de um debate!
   Nas próximas edições, em sintonia com a mencionada mostra de filmes, tentaremos expor os erros, as confusões, as contradições e o retrocesso estético que o Realismo Socialista representou e representa para os artistas de esquerda.