sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

POEMA " ODE AO BURGUÊS ", DE MÁRIO DE ANDRADE:



Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!

A digestão bem feita de São Paulo!

O homem-curva!, o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro,italiano
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!


Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! Os condes Jões, os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os " Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará sol? Choverá? Arlequinal!

Mas á chuva dos rosais

o extâse fará sempre o sol

Morte á gordura!

Morte ás adiposidades cerebrais

Morte ao burguês mensal,
ao burguês-cinema! ao burguês-tíburi!
Padaria suíssa! Morte viva ao Adriano!
"- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... - Conto e quinhentos!!!
mas nós morremos de fome ! "

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! Cabelos nas ventas ! Oh! Carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte á infâmia!

Ódio á soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos
cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...



Mário de Andrade, 1922.


MULHERES:



Lívio Abramo, 1940.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A PRÁXIS DA POESIA: Notas sobre o Surrealismo.



A ação surrealista não se limita a um tempo cronológico: é preciso insistir no fato do surrealismo ser uma postura e um estado de espírito baseados na busca pela poesia, pelo amor e pela liberdade, presente em diversos momentos da História. No entanto, mediante o surgimento da organização e do desenvolvimento histórico do movimento surrealista a partir da década de 1920 em Paris, podemos considerar que a marcha rumo ao maravilhoso foi executada por uma série de iniciativas comprometidas com as idéias nascidas em torno de intelectuais dispostos a sistematizar este que podemos considerar o maior exemplo de revolta do nosso tempo. As iniciativas do Surrealismo apóiam-se evidentemente na contramão do nacionalismo e das convenções que fundamentam os valores estabelecidos. Ao considerar enquanto elo magnético a essência universal do homem, isto é  a noite infinita que nos une num único corpo desejoso, o Surrealismo possui uma dimensão internacionalista. Em detrimento da necessidade dos militantes de esquerda debaterem cada vez mais sobre as lições revolucionárias do Surrealismo, a reflexão que se segue visa compreender a ação surrealista enquanto potencial transformador da limitada realidade permitida pela sociedade contemporânea. Devemos ter em mente que a experiência surrealista e o seu legado(sobretudo  artístico) é do interesse de todos e como lembra André Breton(1896-1966) não “ tem nenhuma chance séria de acabar enquanto o homem persistir ( logicamente) em distinguir um animal de uma chama ou de uma pedra “(Breton, André. O SEGUNDO MANIFESTO DO SURREALISMO).
1.1- O SURREALISMO ENQUANTO MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO.
 O Surrealismo é uma prática poética que consiste no questionamento das bases da cultura dominante. Entendido enquanto um desdobramento radical da rebelião romântica que nasce no crepúsculo das Revoluções burguesas, as idéias surrealistas obedecem ao levante da imaginação contra as opressões do mundo externo ao individuo. Este mesmo conjunto opressor é produto das forças sociais promotoras da miséria tanto no sentido econômico quanto espiritual. O perpétuo fluir da cultura é análogo, e na maioria das vezes equivalente, a existência de um calabouço que o homem carrega nas escotilhas da mente. Para que a voz do desejo pudesse novamente iluminar os rumos da vida humana, foi preciso redescobrir  o poder alquímico da linguagem e do erotismo, cuja a geografia está no corpo da mulher. Quer dizer, a poesia e o amor praticados, vividos e experimentados para além das correias de transmissão de uma realidade social fundamentada no controle e na castração.
 Todo ímpeto revolucionário na vida em sociedade, esteja este em uma dimensão que abrange o político ou o cultural(ou ainda o fim da fronteira entre ambos) obedece a idéia e a constituição de um movimento. Como é amplamente difundido, o Surrealismo não foge a regra:  em meio a aventura espiritual que arranca o individuo para foras das relações psíquicas pré-determinadas, impulsionando assim o aprofundamento do real mediante  um mergulho no inconsciente por diferentes e venenosas vias(o sonho, o automatismo, a deriva, o acaso, a paixão, o amor sublime, etc), o Surrealismo se configura também enquanto ação coletiva(voltaremos as particularidade revolucionárias do Surrealismo mais adiante). Os resultados destas ações já são bem conhecidos: Publicações , exposições, reuniões, intervenções, etc. O Surrealismo envolve a sólida defesa de uma subjetividade renovada, ultrapassando assim o mundo das aparências. Compreender a História do movimento surrealista significa encontrar um exemplo radical de combate ás diferentes formas assumidas pela ordem estabelecida: o totalitarismo, esteja este sob a forma da ditadura política ou da sociedade de consumo, torna-se alvo da revolta surrealista.
  Na urgência da preponderância do desejo sobre as formas de controle social, vislumbramos uma radical operação no âmbito da linguagem. Esta última salta do plano da representação para configurar-se enquanto  posição perante a vida. Obviamente trata-se de uma busca radical cujo o vetor revolucionário expresso na trindade poesia, amor e liberdade pressupõe a ruptura com o mundo tal como ele está estruturado.
  Como disse Walter Benjamin(1892-1940) em seu célebre ensaio SURREALISMO: O ÚLTIMO INSTANTÂNEO DA INTELIGÊNCIA EUROPÉIA, desde Bakunin(1814-1876) não existia na Europa um conceito tão radical de liberdade quanto aquele que o Surrealismo apresenta. Podemos dizer seguramente que a afirmação do filósofo alemão aplica-se aos dias de hoje, acrescentando ainda que o pensamento surrealista  não é e nem nunca foi uma exclusividade européia. Apesar do Existencialismo de Jean Paul Sartre(1905-1980) e Albert Camus(1913-1960) apresentar uma provocadora e pertinente concepção de liberdade, nenhuma outra vertente trouxe como o Surrealismo uma prática visionária capaz de converter correntes em areia e passos terrestres em passos alados. Obviamente que não se trata do único movimento revolucionário da cultura mas salienta-se aqui no entanto que o seu ponto de vista sensível é indispensável para a emancipação humana e portanto pertinente para a luta política e a elaboração de uma arte visionária.
  A experiência surrealista é em primeira instância individual. Antes da ação coletiva ela configura-se enquanto ação interna, modo de expressão altamente libertário em que as possibilidades sensíveis dos indivíduos são ampliadas pelo desejo revelado, incontrolável por excelência. Analogamente ao anarquismo mais elementar, o Surrealismo insurge-se contra as imposições externas do mundo civilizado sobre os domínios interiores do ser.
  O conflito entre imposição social e desejo é resolvido através da revolta, condição primordial para se ter acesso a liberdade, o que nos leva a conclusão de que os surrealistas ilustram historicamente a combate travado entre as forças do Id e do Superego. Muito antes de Wilhelm Reich(1896-1957) politizar o diagnostico freudiano, o Surrealismo aprofunda os conflitos mentais na direção de uma crítica que supera o confortável divã, associando a mutilação emocional do individuo e as antinomias humanas á lógica mesquinha, ao Estado tirânico e á repressão moral empreendida pela burguesia. Ou seja, não se trata de um passeio seguro pelo inconsciente, cuja a chegada visa adaptar o ser humano a ordem estabelecida. A expressão surrealista que restitui organicamente a linguagem e a vida, é portadora de uma vontade de transformação.
 Se o Surrealismo vislumbra o desejo enquanto o motor da vida, logo a revolta que objetiva a liberdade é o motor da História. Quem realmente compreende o Surrealismo está cansando de saber que não se trata de um movimento artístico mas de uma postura existencial que faz uso da arte. Tendo a sua voz minimizada nos debates atuais, longe o Surrealismo está em perder a validade dos seus postulados. Sem dúvida que a recepção ao escândalo, inerente as práticas surrealistas,tornou-se mais delicada em meio a fragmentação das formas de consciência: enquanto a terceira Revolução industrial procurou desarticular o proletariado revolucionário, o mesmo movimento ocorre de modo paralelo na esfera da cultura a partir do esvaziamento das consideradas manifestações de resistência e de oposição. Tal esvaziamento não é um problema especificamente recente,   afinal é preciso notar já na época do Romantismo a espantosa capacidade do sistema capitalista em assimilar a sua própria antítese. Mas ao contrário do que os pessimistas apocalípticos afirmam, nunca se deve subestimar a força criativa na ação intelectual: a dialética social permite que a neutralização não seja definitiva na medida em que a descentralização do conhecimento através de canais de informação, oferecem hoje um campo aberto para movimentos não afinados com a ideologia dominante. Obviamente que isto demanda uma ação sistemática, um esforço permanente para que “os iniciados” no Surrealismo exprimam sem cansaço e sem sectarismo a sua mensagem. Como podemos ver a ferocidade poética do Surrealismo é viva e pulsante(seja na ação dos grupos surrealistas ou dos artistas surrealistas que agem individualmente).
   Não sendo uma doutrina encerrada num irredutível sistema de idéias, o Surrealismo atravessa os diferentes períodos históricos desafiando pelo desejo a civilização ocidental fundamentada tanto na exploração econômica quanto na repressão da sexualidade(o que evidentemente não se limita ao coito, mas nas formas institucionais e normativas do sexo). O Surrealismo é sobretudo um estado de espírito móvel que assume formas específicas em épocas e lugares.
1.2- DA REBELIÃO ROMÂNTICA Á CRISE DA ARTE.
  Não se compreende o Surrealismo fora da crise da cultura na História contemporânea. Existe um abismo assustador que separa o projeto do Surrealismo das imagens opressoras que resultariam naquilo que Guy Debord(1931994) intitulou de sociedade do espetáculo. Os efeitos irracionais do espetáculo arquitetado nas últimas décadas(sobretudo através do poder midiático) promove a ficção de uma realidade que tem ocultada o seu funcionamento. Este estado de coisas será totalmente visível na segunda metade do século XX. Antes, porém, já encontramos os primeiros atos deste espetáculo que opõem-se com toda dedicação a restituição integral do homem consigo mesmo.
    No início da Idade Contemporânea a ferramenta Iluminista e os disparos do canhão nacionalista erguem a razão enquanto parte central na constituição do esqueleto de um novo mito. As Revoluções burguesas são a ante sala de uma crise cultural que atenua os antagonismos humanos em praticamente todas as esferas da existência. Junto á herança racionalista do século das luzes, a burguesia constrói um mito completamente separado das novas condições produtivas da sociedade. A partir das relações de trabalho que flagram a exploração da classe operária, a alienação passa a pontuar a soma das relações humanas: a cultura apresenta-se enquanto um conjunto de atividades separadas da totalidade social. Tendo uma pretensa existência autônoma, desvinculada portanto da vida(a um só tempo social e psíquica) a cultura da era burguesa expressa a alienação social . O conseqüente desencantamento de uma sociedade em que a Beleza passa a estar condicionada pelo lucro, impulsiona a rebelião romântica: a partir do século XIX o artista e o intelectual movem-se pelo primado da crítica, da rebeldia e do protesto contra a mercantilização da vida. O individuo teria nas suas obscuras camadas interiores um forte potencial de reação que deveria redefinir o sentido da vida, em forte oposição ás tentativas de condicionamento do pensamento. Estamos portanto diante das raízes do movimento surrealista, ainda que pelas vias indiretas do Romantismo.
  O homem romântico vê no passional e no insano as qualidades de um novo mito, fundado na paixão e na liberdade. Se do ponto de vista político o Socialismo surge enquanto projeto de destruição do capital, do ponto de vista da subjetividade e da transgressão dos costumes, as figuras do poeta e do artista apresentam-se enquanto donas de uma atividade dotada de um não conformismo absoluto. Paralelamente a rebeldia romântica(que se desdobra por exemplo na criação literária dos simbolistas) e a cosmogonia proporcionada pela poesia(amplificadora sem limites da liberdade individual), a cultura depara-se com a mais sombria das filhas do cientificismo: a absorção técnica da experiência estética para fins capitalistas. Sendo assim a criação de um mercado cultural expõe o constrangimento de converter a arte em mercadoria: a arte, o grande espelho da História, encontra-se agora acossada pelas determinações econômicas e políticas do capitalismo.
  Não será gratuito que ao longo do século XX a racionalização prévia da indústria para a domesticação do aparelho sensorial, fez e faz da Estética uma base fundamental para o exercício da manipulação e da consolidação da ordem capitalista. Em oposição a isso (mas não apenas) as novas correntes estéticas da arte moderna encarnam o combate declarado ao conjunto da cultura da era burguesa. As rupturas formais da arte moderna, expressas nas primeiras vanguardas, procuraram romper em realidade não apenas com os procedimentos de representação clássica(o cordão umbilical da cultura greco-romana que  várias gerações de artistas europeus mantinham), mas também com a moral burguesa. Porém, a revolta da arte moderna estreitou em grande parte os seus limites com a conversão mercadológica que é  precedente de uma dimensão estética:  para o apetite industrial independe se a arte é clássica ou moderna. A estes impasses de absorção da arte que os movimentos modernos sofreram , o Dada e o Surrealismo respondem não pelo terreno formalista mas pela expressão iconoclasta, da desestruturação dos valores ocidentais.
  A alienação inerente ás práticas culturais coniventes com o mercado, o Dada não conseguiu responder totalmente com o seu negativismo: o seu ímpeto de destruição e de aborto frente a qualquer determinação prévia ou programática, carecia de um projeto de reconstrução do conhecimento humano. Foi neste último aspecto que o Surrealismo sem rejeitar a arte enquanto meio de expressão, assumiu enquanto missão espiritual e histórica. Sua especificidade nasce de um projeto radical, que foi compartilhado por poucos homens. Isto não deixa de ser uma decorrência do fracasso registrado pela não realização do CONGRÉS DE I` ESPIRIT MODERN em 1922. Tendo a frente membros do futuro grupo surrealista de Paris e já deflagrando a crise no movimento Dada na capital francesa, a tentativa não consolidada deste congresso representou na verdade a impossibilidade de uma unidade entre as correntes do pensamento moderno.
1.3- A FASE HERÓICA DO MOVIMENTO SURREALISTA
  Vejamos agora o auge do Surrealismo enquanto movimento organizado, isto é, o período que corresponde as décadas de vinte e trinta. Evidentemente que o movimento continuou (e continua) após estas duas citadas décadas, entretanto suas lições e manifestações fundamentais encontram-se neste recorte histórico.
  Encontramos em Paris, ou seja o centro do pensamento ocidental no início do século, indivíduos que após a malograda tentativa de um congresso que superaria em tese os limites históricos do Dada em França, encontram-se isolados em um pequeno grupo(deve-se lembrar que a crise do Dada em Paris não determinou o fracasso mundial deste movimento, como nos mostra o caso dos dadaístas alemães, altamente politizados e coerentes). Não é verdade que o Surrealismo seria uma espécie de dissidência Dada, afinal antes da adesão de nomes como André Breton e Louis Aragon(1897-1982) ao movimento Dada, estes e outros já praticavam a escrita automática e estudavam atenciosamente as descobertas psicanalíticas, ou seja elementos que se inserem na pesquisa surrealista.
     Foi mais do que natural o fato de um pequeno grupo de intelectuais dotados de um projeto ousado de idéias, se fechassem em um circulo afim de se auto afirmarem. O problema é que reunidos dentro de uma seita este mesmo grupo acabaria por restringir o seu alcance libertador a poucos homens, exigindo o controle das práticas derivadas do seu projeto. No caso do Surrealismo encontramos diversos exemplos de intelectuais e artistas que por não se sujeitarem aos procedimentos de normatização do grupo, acabaram não em negar o movimento mas amplia-lo numa direção que não permite a existência de lideres controladores. É preciso separar aqui o detrator do verdadeiro surrealista(este em muitos casos chega a rejeitar a expressão “surrealista “). O primeiro recusa o Surrealismo pelo seu compromisso com a ordem, enquanto o segundo preza por sua independência. Apesar deste mal passo traduzido nas restrições de grupo, o Surrealismo demonstrou nas décadas de vinte e trinta a força de suas idéias.
  Mesmo vivendo alheios aos valores dominantes da sociedade, os surrealistas desde a publicação do Primeiro manifesto em1924 , nunca abstiveram-se de uma atuação pública que passa obrigatoriamente por um compromisso com a revolta e com o descrédito do mundo burguês. A História registra que o Surrealismo no seu auge responde contra a separação entre arte e vida, entre os contrários que escravizam o homem: entre o sono e a vigília responde com a realidade absoluta, entre a linguagem e a vida responde com o automatismo, entre a moral cristã e a hipocrisia responde com o escândalo, entre a casualidade e o desejo responde com o acaso objetivo, entre a carne e o espírito responde com o amor louco, entre a rebeldia individual e a Revolução social responde com a conjugação entre Arthur Rimbaud(1854-1891) e Karl Marx(1818-1883), etc.
  Durante a primeira metade do século Paris se apresentava enquanto o centro explosivo das novas idéias. Pelas suas convulsivas alamedas todos os passos levavam a aventura do novo, da ânsia por liberdade e por uma redefinição da vida em plena modernidade. André Breton foi capaz de não se desviar nem por um momento sequer da revolta necessária para uma transformação efetiva da vida. Junto a outros grandes revolucionários como o extraordinário poeta Benjamin Péret(1899-1959), Breton soube unificar a partir de um exame detalhado e de uma identificação apaixonada com autores e tradições que antecedem a Revolução surrealista  em diversos aspectos, as bases de uma nova identidade poética: a gnose, a pulsante linha apaixonada que liga os trovadores aos românticos e a energia satânica de autores como Lautréamont(1846-1870). Intelectualmente abertos ao diálogo alquímico com diferentes vertentes do pensamento,os surrealistas sentavam-se a mesa das videntes e ao mesmo tempo acenavam para Hegel( 1777-1831) e Marx. Como podemos notar, o movimento surrealista em seus primórdios era um fenômeno do pensamento cuja a natureza arrojada respondia com fervor aos impasses culturais do período entre guerras. Sob os escombros da Primeira guerra mundial(1914-1918) os surrealistas mergulham nestas referências citadas e articulados junto as atordoantes revelações da Psicanálise, buscam um novo estágio para o entendimento da vida.   
   O movimento surrealista durante os anos vinte via na reformulação da vida psíquica um modo de revolucionar a sociedade. As revistas, o escritório de experiências, os panfletos e a selvageria exemplar eram entendidos enquanto meios de reação contra a repressão ás desconhecidas zonas do ser: reservatório inesgotável por onde se é possível mudar verdadeiramente a vida. Ao passo que a economia desigual cerceia a produção e a organização política limita a liberdade, as forças criativas produtoras de cultura não podem sujeitar-se por muito tempo ao mesmo componente tóxico da lógica, sendo necessária a entrega do individuo ao seu próprio universo interior.
  O sonho e a fantasia são fontes produtoras de imagens que desafiam os mecanismos de controle mental. Muito antes da publicidade se apropriar destes terrenos sagrados localizados no próprio homem, para fins de manipulação e de manutenção da ordem, os surrealistas lá fixam morada na aposta na emancipação humana. Não hesitaram portanto em declarar guerra á figura da autoridade, seja ela médica, policial ou religiosa. A loucura no Surrealismo não é diagnóstico de doença mas uma força primitiva anterior á civilização, um anarquismo cristalino de ordem poética, isto é, de prática da poesia para além da vã literatura.
  Ao mesmo tempo, anteriormente a publicação do manifesto de 1924, Breton e outros falaram da necessidade de se frear as atividades experimentais correspondentes “ a era dos sonos”: efeitos desagradáveis expunham a necessidade de conservar aquilo que Freud( 1856-1939) chamou de Instinto de preservação(alguns anos mais tarde, Breton ao refletir sobre o conceito de liberdade, usa o exemplo de Nadja, protagonista do seu romance convulsivo, para reafirmar este primado psicanalítico). Naquilo que implica a fase inicial do movimento em França, aonde se destacam as presenças vulcânicas de Robert Desnos(  1900-1945) e Antonin Artaud(1896-1948), notamos um clima febril e furioso que ameaçava a estabilidade psicológica do grupo e poderia leva-lo a gastar de forma ineficaz toda a sua munição.
   Se a loucura deveria ser freada para garantir o alcance revolucionário do movimento, então foi necessário uma volta a pesquisa de linguagem e adesão ao compromisso político para desestabilizar o capitalismo e criar um contexto favorável aonde o homem pudesse viver de acordo com o seu desejo. Deparamo-nos a partir de então com duas situações básicas no movimento: de um lado os surrealistas não se curvam a nenhuma forma de controle exercido por nenhum centro de poder(por exemplo, após a adesão ao marxismo, será comum o choque entre as idéias libertárias do Surrealismo e o Partido Comunista francês). Por outro lado e paradoxalmente, o movimento torna-se cada vez mais uma estrutura centralizada que engessa a margem de ação de vários surrealistas. As clássicas fulminações e as dolorosas expulsões são resultados desta atmosfera autoritária. Sabe-se que Breton não tirou proveito pessoal disso, mas este modelo ultrapassado de movimento tende a privilegiar membros e a manipular fatos. A História do Surrealismo  está em divida com uma série de indivíduos que não se curvaram aos ditames de grupos e por isso trouxeram contribuições autônomas para a aventura surrealista. Intelectuais reunidos em torno de nomes como Georges Bataille(1897-1962), nos mostram que aquilo que podemos entender por Surrealismo não depende de um único modelo de ação.  
  Apesar da crescente camisa de força,o movimento continua ousando no campo do desejo, desafiando tudo aquilo que é imposto pelo racionalismo. Retomando a tradição do flâunier, os surrealistas viam no passeio á deriva a possibilidade de presenciar o  imprevisto, de recuperar a livre interpretação poética no espaço da grande cidade acorrentada pela razão. Trata-se do deslocamento do desejo sem fins pré estabelecidos. O encontro do objeto do desejo acaba direcionando os passos para o território amoroso.O amor será defendido pelos surrealistas como em nenhum outro movimento do século passado.O Surrealismo possui uma  radical concepção do amor: através do encontro entre dois seres únicos ocorre a partir de uma sexualidade despudorada uma fusão cósmica. O homem e a mulher crentes na aposta do encontro com o ser que lhe é correspondente, retomam a trilha em direção ao mito do andrógino primordial. Seja nas palavras de Breton(amor louco) ou de Péret(amor sublime) o Surrealismo apresenta uma busca que supera a triste situação esquizofrênica entre o casamento e a libertinagem. A mulher é celebrada e defendida enquanto a promessa da felicidade humana. O amor sem pudores e sem hipocrisia levaria até a Idade de ouro, aonde os males do patriarcalismo seriam evaporados por uma nova era.  Não sendo uma inclinação espiritual que resulta necessariamente em felicidade(as condições sociais que separam os seres humanos mediante um regime de exploração e de alienação, interferem na escolha do ser amado), o amor segundo o Surrealismo é uma busca no seu sentido mais desvairado e incerto.
  Diante do atual contexto, isto é após a chamada Revolução sexual das décadas de sessenta e setenta, a concepção surrealista não deixa de ser uma sublimação ascendente, uma postura que nega a sexualidade sem horizonte de uma época de consumismo e vazio existencial. No entanto, é preciso estar atento ao fato do discurso do Surrealismo sobre o amor não se tornar uma imposição que vise reprimir outros discursos sobre o desejo: lembremo-nos por exemplo de uma infeliz intolerância do movimento frente a  homossexualidade(como ficou claro a partir da ENQUETE SURR LA SEXUALITÉ em 1928).  O amor monogâmico e heterossexual do Surrealismo não corresponde a totalidade dos desejos humanos e seu projeto deve coexistir com outras maneiras de viver e exprimir a sexualidade .
    No campo da arte propriamente o Surrealismo trouxe uma liberdade criativa que resultou em técnicas e expressões que apresentam a Beleza convulsiva contra as concepções de Beleza estática e normativa. A escrita automática, a fusão entre gêneros narrativos no mesmo texto, o método paranóico crítico na pintura, a contribuição onírica ao chamado cinema de poesia, as experiências cênicas que culminariam no teatro da crueldade, são apenas alguns exemplos da arte revolucionária empreendida pelos surrealistas: revolucionária pelo fato de desafiar os limites entre o mundo interior e exterior dos homens através da experiência artística que por sua vez questiona as convenções sociais e exige uma outra forma de organização política na qual o desejo estaria no primeiro plano. A arte dos surrealistas requer uma nova percepção e estimula o questionamento e a rejeição dos valores dominantes.   
   Podemos falar sem dúvida que o pensamento surrealista seja no campo do amor, da arte ou da política, ambiciona uma transformação radical do ser humano. Do ponto de vista político a adesão ao marxismo ocorre a partir de um forte componente anarquista. Por mais paradoxal que pareça ser, a tensão( ou seria confluência ?)  entre as bandeiras negras e as bandeiras vermelhas traz uma contribuição original ao pensamento político. Se em um determinado momento aderem ao trotskismo e em outro ao anarquismo é pela tentativa de conciliar as práticas de emancipação do Surrealismo com uma prática política coerente com a emancipação do próprio proletariado. O documento MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE assinado por Breton e Leon Trotski( 1879-1940) em 1938, nos dão apesar dos limites históricos circunstanciais da sua redação, a idéia essencial de que para o Surrealismo a liberdade e a independência de suas ações(no plano da arte por exemplo) são pressupostos para toda e qualquer militância.
     Apesar de suas conquistas o movimento surrealista encontraria uma série de obstáculos preparados pela sociedade burguesa. Vejamos a seguir alguns dos impasses do movimento.
1.4- A CRISE DOS MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS        
  Data-se da década de trinta em diante uma proliferação de livros, quadros, filmes e revistas que contrariamente aos interesses do movimento surrealista resultaram em uma espécie de “sucesso cultural “. Apesar do escândalo e da rebeldia, os surrealistas encontram-se num mundo em que a industrialização da arte levaria ao acirramento da separação entre cultura e sociedade, isto é, a linguagem, mesmo a surrealista, teria a sua força revolucionária limitada pelas condições objetivas do espetáculo mercantil. Isto implicaria no fim da imagem enquanto meio de transformação da subjetividade? Seria necessário o Surrealismo abrir mão da criação artística para as suas sondagens interiores?  Em primeiro lugar não se concebe o homem sem a linguagem: este é produto e produtor desta. Para os surrealistas a linguagem é um ponto de partida para a ação transformadora. A imagem enquanto substrato orgânico do desejo é concebida no Surrealismo como a  negação do racionalismo que pontua grande parte da conduta humana: trata-se da busca pela recuperação  da totalidade do ser. Não significa combater a ordem através da representação mas de converter o signo á coisa significada. No entanto, dentro do sistema capitalista, aonde a mercadoria cultural impõe a separação entre a arte e a vida,  o Surrealismo vem sendo como já dissemos anteriormente, alvo de reducionismo artístico. Ao tornarem-se referências para a arte e a literatura a obra dos surrealistas se converteria em patrimônio da cultura oficial: pensemos nos poemas de Paul Éluard(1895-1952) ou ainda na pintura de Max Ernst(1891-1976) e Joan Miró(1893-1983) , por exemplo. Em meio as exposições internacionais de arte e a criação de vários coletivos surrealistas pelo mundo(sobretudo a partir dos anos quarenta), o movimento surrealista se via ameaçado pela absorção do sistema.
 A problemática da arte enquanto mero produto a serviço do mercado é uma questão que ocupou vários movimentos europeus de contestação durante o pós-segunda guerra. Ao romperem com o Surrealismo para criarem movimentos autônomos(o que na prática não ultrapassa o âmbito da influencia surrealista, alguns até mesmo configurando-se enquanto dissidências do movimento surrealista),   tais movimentos caem no retrocesso da antiarte, cuja a raiz é o Dada. Longe deste artigo desclassificar os movimentos de antiarte, no entanto frisamos que a rejeição aos procedimentos de criação plástica e literária não resolvem por si só o problema da expressão na era do capitalismo monopolista. Tanto é que estes grupos desenvolveram um tipo de intervenção urbana que migraria definitivamente para o campo estrito da ação política. O fim da fronteira entre cultura e política, a Internacional Situacionista procurou responder com muita arrogância e pouca consistência poética. Embora nomes como Guy Debord procurassem superar com violência e honestidade o beco sem saída da criação cultural, pode-se dizer que os situacionistas não eram mais eficazes  com seus métodos espontâneos de intervenção e de apropriação de imagens(tais ações tendem a diluir-se em meio a organização autoritária do espaço urbano, composto pelos signos do grande capital).
   De que maneira o movimento surrealista pode manter a sua declaração de guerra pela independência mental? Devemos observar que a crise do movimento surrealista é parte integrante da crise do conjunto dos movimentos revolucionários(na política e na arte). Tratando-se especificamente  de movimentos artísticos e de movimentos culturalmente mais amplos, a absorção técnica(já referida) exercida pela cultura de massa(mas que dialeticamente abre novas brechas, como já afirmamos também) tem causado graves prejuízos ao espírito. É preciso debruçarmo-nos sobre o atual contexto do imaginário, enquanto um obstáculo relativo para o Surrealismo e outros movimentos. Relativo porque não se trata de absolutizar um único aspecto  para determinar a crise atual.
1.5- O IMAGINÁRIO NA FASE DO CAPITALISMO MONOPOLISTA.
  As representações mentais são hoje indissociáveis da realidade mercantil? Perante a chamada liberdade de representação, análoga ao liberalismo burguês, revela-se um censor não muito identificável mas muito poderoso: a imagem enquanto expressão única da mercadoria estaria perdendo a sua dimensão interior ou particular. As separações cada vez mais dilacerantes entre o indivíduo e o seu desejo(este estaria reduzido ao ímpeto do consumo e da conseqüente coisificação do universo) colocariam em questão a criação  artística no plano surrealista. No entanto, isto não pode ser absolutizado. A imagem é um campo de combate no qual o quase esmagamento do ponto de vista surrealista exige a contrapartida de iniciativas e organizações revolucionárias para se fazer oposição as atuais banalizações. Se os meios de comunicação de massa saturam dentre outras coisas obras surrealistas, isto não implica necessariamente no abandono da pesquisa interior. O segredo de um sonho ou uma paixão desvairada expressos nas linhas de um verso ou de um desenho, são imunes ao Império da mediocridade. A crise revolucionária da qual o Surrealismo é parte não pode ser superada  pela ocultação de sua prática como já foi defendida por muitos surrealistas. É preciso que a experiência surrealista esteja no horizonte espiritual daqueles que lutam pela transformação concreta da realidade. As motivações internas do Surrealismo são indispensáveis para esta transformação pois elas se dão numa área do conhecimento em que os censores do capital podem agir muito debilmente(um livro de poemas surrealistas pode ser comprado, mas o seu efeito desagregador no individuo não pode ser calculado pelo preço ou por números rasteiros). O ponto de vista sensível do Surrealismo não é de massa, mas sim uma possibilidade revolucionária ao alcance de qualquer um.  
     Prezados leitores: o Surrealismo está vivo!(como poderia ser diferente?). Ele não se limita no quadro de influências estetizantes, na banalização de sua grafia e nem mesmo nos grupos surrealistas atualmente espalhados pelo mundo. A concepção surrealista  deve cada vez mais estar ligada as práticas culturais e artísticas dos militantes revolucionários(as lições expressivas do Surrealismo ainda podem estar a serviço da Revolução, desde de que sejam compreendidas em sua natureza autônoma). Invocando as verdadeiras implicações históricas do Surrealismo, os militantes de esquerda encontram nele um forte aliado contra o capitalismo, ou seja, um sistema que é inimigo declarado do maravilhoso.
                                                                    Afonso Machado

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

EXISTE SIM ARTE NA CHINA

A crítica burguesa de arte chegou ao ápice do gozo reacionário com
a afirmação do artista Ai Weiwei no ano passado, para o qual não
existe arte na china, pois num país " totalitário a imaginação e a
paixão criadora não podem existir ". É comum que o mundo capitalista se
esforçe para desqualificar a produção cultural dos poucos paises
socialistas que restam. Tudo começou com as discussões em torno da
exposição do ano passado, Arte da Mudança: Novas direções da China. É
claro que os rumos estéticos e econômicos da China podem ser
questionados, mas há de se detectar se tal questionamento revela a
crítica de esquerda ou de direita. Apesar das contradições econômicas
e políticas que a China atual apresenta no plano do
socialismo(saudades de Mao, afinal a China mais do que antes deveria
passar por uma nova Revolução cultural...), é facil dizer que a arte
chinesa não passa de porco agridoce(que aliás é bem melhor que
hamburguer norte americano). Esta espécie de comentário se baseia numa idéia
superficial do que seria a liberdade de expressão: o discurso liberal
ataca a censura do governo chinês mas acaba por ocultar que no
capitalismo " a liberdade " pertence aos economicamente mais fortes,
aos detentores do capital; ou seja a verdade é que nos paises
capitalistas a arte é reprimida , banalizada e isolada dos
trabalhadores, enquanto
que na China busca-se em certo sentido assegurar os interesses da
coletividade perante a produção cultural(ainda que o Partido possua
contradições e erros em tais esforços). Weiwei tem lá os seus
problemas com as autoridades chinesas e evidentemente que não concordo
com a repressão aos intelectuais e artistas chineses(o comunismo não
pode proceder
deste modo em questões desta natureza). Porém, isto tudo deve ser
discutido entre os camaradas, entre o Partido, entre artistas e
críticos chineses e não dar de bandeja para os capitalistas argumentos
distorcidos e fora de contexto para se esculhambar a cultura chinesa. Eu
diria até que a ameaça á arte e as tradições do povo chinês não partem
da censura do governo mas sim das grandes corporações capitalistas que
andam estabelecendo parcerias com empresas chinesas(vejam por exemplo
a crescente parceria entre Hollywood e o cinema chinês, ou seja uma verdadeira
ameaça para a arte socialista que enfrenta uma espécie de indústria
cultural chinesa).
Existe sim uma arte chinesa, colhida a partir de experiências
nacionais específicas. Weiwei acaba generalizando a produção artística
e a confundindo com as contradições do Partido na China. Aliás o poder
da arte faz com que ela seja um espelho para as atuais contradições da
sociedade chinesa, e isto pode ajudar os camaradas a refletir sobre o
futuro do socialismo e de uma arte feita nesta perspectiva política.
Defendo aqui a legitimidade da arte revolucionária produzida entre os
poucos artistas socialistas que
resistem.

José Ferroso