segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A LITERATURA ESTRATEGISTA DO NOSSO TEMPO

Aproveitando a cauda do recente debate de nossa publicação, gostaria
de pegar este cantinho do blog para discorrer brevemente sobre alguns
problemas que merecem atenção por parte daqueles que estão situados no
combate literário. Sem querer atropelar o ocorrido debate estético,
creio que  antes de discutir as relações entre forma e conteúdo seja
preciso enfocar a lucidez de Walter Benjamin quando ele nos fala da
necessidade de meios de produção culturais independentes. Não é
possivel referir-se a tendência literária de esquerda se esta não é
determinada concretamente em sua base de material de produção(seria
puro idealismo). Tal observação defendida pelo filósofo alemão acaba
sendo pra lá de últil ao escritor dos nossos dias desejoso de sua
literatura ser expressão de questionamento frente as forças vigentes
da sociedade capitalista. Todo escritor revolucionário precisa ter no
peito que sua obra além de não poder alimentar a máquina
capitalista(configurada neste caso nas grandes editoras e na grande
imprensa) precisa corresponder as exigências de formação de público.
Sendo assim muito mais eficaz do que sonhar de modo masturbatório com
a publicação " do livro " (que requer grana) é agir visando a
circulação cada vez maior de material literário como por exemplo
através de folhas volantes, blogs, sites, etc.
No nosso Brazuca-Brasil a necessidade de formar um público que
possa consumir literatura combativa se coloca sobre imensos
obstáculos: Novelas e filmes comerciais tem demonstrado recentemente
as periferias das cidades brasileiras como um exótico e natural cartão
postal de gente " feliz e trabalhadora ". A cultura visual no contexto
capitalista dá uma bordoada na literatura de cunho social .Sabemos
qual é o papel ideológico de tal produção audiovisual na conservação
da sociedade de classes. Que o digam os escritores, poetas e artistas
da periferia que por produzirem na sua própria carne a ação artística
que protesta, acabam por desmentir o " modismo favelado ".
É claro que os escritores das periferias brasileiras tem a sua
própria produção, mas  a luta literária exige mais: se faz necessário
o balanço de técnicas literárias, de linhas estéticas, para assim
dinamizar a literatura e ampliar seus mecanismos expressivos. Por isso
a importância do debate como aquele que ocorreu por estas bandas entre
José Ferroso e os " Independentes ".
A Educação, não apenas em sala de aula, mas na rua, nos bares, é
a condição vital para que escritores troquem suas experiências e tomem
contato com diferentes tendências e movimentos(o Futurismo e a Beat
genearation, por exemplo, podem ser assimilados pelo escritor de hoje
num gesto de reeleitura). Há uma História da literatura revolucionária
que não pode ser monopólio da burguesia.
 A partir de um meio de produção independente os escritores
brasileiros terão condições de assumir posturas mais claras na hora de
compreender o significado político das letras. Neste caso tanto os
argumentos de Engels (para quem o melhor para uma obra literária é que
o autor mantenha a sua posição oculta, deixando a obra fazer brotar as
contradições da realidade) quanto de Sartre(para quem o escritor deve
ser engajado colocando a sua literatura enquanto instrumento para a
causa da liberdade), podem estar em pauta.


                                        Lúcia Gravas.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

DO ROMANCE SOCIAL " VIDAS SECAS ", DE GRACILIANO RAMOS:



 "... O soldado magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade
de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos
afrouxavam.
... Fabiano pregou nele os olhos ensaguentados , meteu o facão na
bainha. Podia mata-lo com as unha. Lembrou-se da surra que levara e da
noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para
maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo? Bulir com as pessoas
que não fazem mal a ninguém. Por que? Sufocava-se, as rugas da testa
aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis abriam-se demais, numa
interrogação dolorosa. "


Graciliano Ramos, 1938.

CINEMA E SUBCONSCIENTE:




  "... O cinema parece ter sido inventado para expressar a vida
subconsciente, tão profundamente presente na poesia; porém, quase
nunca é usado com este propósito. Das modernas tendências do cinema, a
mais conhecida é a chamada neo-realista. Seus filmes apresentam aos
olhos do espectador fatias do real, com personagens tomados das ruas,
exteriores e interiores autênticos. Salvo excessões (entre os quais
cito muito especialmente Ladrões de Bicicleta) o neo-realismo nada fez
para ressaltar em seus filmes o que é próprio do cinema, quero dizer,
o mistério e o fantástico. De que adianta toda essa roupagem se as
situações, as motivações que animam os personagens, suas reações, os
próprios argumentos, estão calcados na literatura mais sentimental e
conformista? ".


Luis Buñuel, 1958.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

EM DEFESA DA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE HOJE:

Ficamos um tanto surpresos com o artigo do companheiro José, dado o
seus argumentos que parecem conter uma dose sacal de zhdanovismo (e
isto sim é anacronismo...). Ele sabe que o LANTERNA é um desafio
cultural perante a pluralidade de correntes políticas existentes na
esquerda e evidentemente que isto assume discordâncias no campo da
arte e da cultura como um todo.Mas seus argumentos estão imersos em
confusões. Aceito o convite para o debate, parece que o companheiro
José insiste em incorrer sobre um erro teórico que ainda confunde
muitos marxistas(inclusive trotskistas!) interessados em
questões literárias e artísticas: A natureza revolucionária específica
da arte e a sua diferença frente as linguagens usuais do universo
político. Antes de nos ocuparmos deste erro, é preciso alertar para o
perigo que os argumentos do companheiro José podem acarretar no plano
artístico. Na sua vontade em armar a classe operária com uma arte
própria para enfrentar os grilos da Indústria cultural, ele peca pela
brecha de transformar a arte num veículo ideológico que pode servir
como razão de Estado. O Realismo socialista que com certeza o
companheiro José dada a sua envergadura intelectual(infelizmente não
demonstrada no seu artigo medíocre) deve conhecer e muito, é um
espectro estético infeliz que não vale á pena voltar abordar, já que a
cultura de hoje reserva problemas mais graves para o artista
revolucionário.
   Em uma coisa concordamos com José: Num país de famintos a cultura
de massa se converte num obstáculo para a consciência revolucionária
dos trabalhadores. Entretanto quando a intervenção da arte passa a
estar em questão devemos levar em conta que os elementos que a
constitui não possuem a mesma função de um argumento lógico, comum.
Diferentemente do panfleto, do artigo de jornal e da propaganda, a
arte permite o intercâmbio entre os impulsos do inconsciente com a
intolerável realidade capitalista. Sendo assim frente a uma realidade
castrada a expressão artística converte-se num protesto, em revolta
contra a sociedade burguesa. Tal protesto não envolve palavras de
ordem mas sensações, experiências que ao negarem a realidade mercantil
tornam-se ato de liberdade e libertação(em nossa opinião arte não é
extensão de cartilha e nem um meio pedagogizante). Mas para uma pessoa
que nunca tomou contato mais aprofundado com a arte moderna(e nem
mesmo com a a psicanálise, tão injustamente difamada por filósofos de
hoje em dia), tudo isto é reprimido pelo atalho, pela esquina
preguisoça do panfleto artístico. Talvez José não devesse se ocupar de
arte já que um bom manual de sociologia cumpriria o papel que ele
insiste em atribuir ao romance, a pintura, ao filme, etc.
  O companheiro José faz um ataque ao que ele julga ser a orientação
cultural do trotskismo. Não restam dúvidas de que as reflexões
artísticas que o trotskismo apresenta envolvem o que tem de mais
avançado nos debates estéticos das últimas décadas, incluindo o
Brasil(das reflexões estéticas em artes plásticas promovidas por Mário
Pedrosa chegando até a atitude Rock `n `Roll da Libelu que reoxigenou
o movimento estudantil nos anos setenta). O que o trotskismo trouxe
realmente no plano cultural foi a possibilidade do artista ser um
revolucionário independente que não coloca a sua arte a serviço de
nenhum Estado totalitário. Para nós, esta questão é clara(e até
ultrapassada), mas não para o companheiro José.
As observações de José em relação a obra Literatura e Revolução de
Trotski bem como os ataques imprórios ao Surrealismo, beiram o
ridículo. Trotski talvez seja o único lider soviético que compreendeu
as caracteristicas próprias da criação artística: Esta é irredutivel
perante as vozes externas que procuram molda-la, aprisiona-la. José
não entende a diferença que a Revolução burguesa e a Revolução
proletária possuem no plano cultural: Para os trabalhadores não
interessa uma arte de classe mas sim uma arte universal e comum,
comunista, o que deve ser construido no plano histórico. A liberdade
da arte sempre foi uma defesa do movimento surrealista(até hoje
atuante no mundo)e inevitavelmente diante do autoritarismo stalinista
dos anos trinta (na política e na arte)  Breton e seus companheiros
avançaram tanto politicamente quanto artisticamente na direção do
trotskismo. Acreditamos que José deva estudar(ele pode aproveitar o
próprio veiculo do LANTERNA para isso). Ele deverá observar que em
1938 a ameaça totalitária que sufocava a arte tinha na FIARI uma
possibilidade de luta. Hoje não sendo mais o fascismo e o stalinismo
os grandes problemas, a arte revolucionária independente deve se opor
a cultura de massa em meio a crise que o capitalismo enfrenta.
   Por fim afirmamos que um debate acerca da arte revolucionária
merece a formulação de novas problemáticas a partir da reeleitura das
experiências do século passado.  Novos horizontes para a arte(livre,
independente).


                                         Ass: Os Independentes.

OS BICHOS:




Lygia Clark, 1963.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

ARTE PROLETÁRIA É ATUAL E ATUANTE


Num país com mais de 17 milhões de famintos como o nosso, qual
seria em termos estéticos a resposta dada a uma sociedade submetida a
todas as bestialidades da cultura de massa? Não me sinto nem um pouco
acanhado em dizer que a saída está numa arte proletária. Antes que os
trotskistas comecem a berrar(e sei perfeitamente alguns deles se
encontram enquanto companheiros de Redação neste blog), devo
esclarecer que este é um conceito não somente atual mas necessário
para toda a América Latina que sofre com as imposições econômicas e
culturais da burguesia.
Arte proletária envolve uma produção plástica, literária,
cinematográfica, teatral, etc, que tem por tema os dramas da classe
operária e a crítica direta, didática a sociedade capitalista e suas
mazelas sociais. Estes dramas repercutem não de forma evasiva, dando
margem para reformismo(político e...estético), mas de forma
impactante, realista.Não julgo importante a origem sócio-econômica de
quem cria desde que seja um revolucionário comprometido com a denúncia
social e a defesa dos trabalhadores(Jorge Amado e Graciliano Ramos
seriam exemplos avançados disso na literatura brasileira de referência
aos jovens escritores revolucionários de hoje).
É comum que a crítica burguesa fique horrorizada com o caráter de
propaganda da arte proletária. Entretanto se a burguesia tem na
publicidade um forte sustentáculo ideológico, acredito que a arte pode
e deva ser um panfleto bem feito. Ser panfletário em arte não é crime,
mas uma necessidade de comunicação, de esclarecimento junto aos
trabalhadores. Se uma propaganda é dotada de dimensões estéticas, por
que a obra de arte também não pode funcionar enquanto propaganda
revolucionária para as massas? Defender a arte proletária hoje é ser
consequente politicamente, é abrir espaço para expressões artísticas
que dialogam com o real e que portanto não ficam no abstracionismo e
no relativismo próprios da arte contemporânea(realizada por artistas
da pequena-burguesia, sem rumos, completamente alienados).
Leon Trotski em seu livrinho Literatura e Revolução(1923) errou
feio em vários momentos. Errou primeiramente ao dizer que os
trabalhadores não podem ter uma arte própria, de classe, pois além de
não terem assimilado todo o legado artístico e literário, iriam
desaparecer enquanto classe no seio do comunismo. Isto é um erro
primário: O período de ditadura do proletariado pode não ser
breve(como bem demonstra no plano histórico) e necessita sim de uma
arte que seja expressão dos interesses históricos da classe operária.
Caso contrário o que ocorreria no socialismo do ponto de vista
artístico para sedimentar a Revolução? Apenas a revisão da História
literária e artística?Da Antiguidade clássica as vanguardas? Outro
erro do general do Exército vermelho está em achar que a arte
socialista será construída no futuro(mas o pior de tudo é achar que os
seus seguidores políticos pensam o mesmo até hoje!). Para completar os
equívocos da orientação cultural trotskista, Trotski defende um certo
liberalismo em arte, o que pode acarretar em irresponsabilidades
estéticas. É claro que considerações deste tipo só poderiam ter levado
ao encontro com o surrealismo: Movimento evasivo, profundamente
individualista, pequeno-burguês, desconectado da vida operária em sua
concretude. Tenho pra mim que o Manifesto da FIARI que Trotski redige
com o chefe do surrealismo André Breton, é de de uma confusão
tremenda: "Toda licença em arte " e "independência da arte para a
Revolução ", são expressões vagas que na dinâmica da luta de classes
podem levar a um enfraquecimento cultural da classe operária: Obras
oníricas, individualistas, imersas em freudismo, são o oposto de obras
que comunicam corretamente a realidade do proletariado e
consequentemente ajudam na formação de sua consciência política. Tenho
pra mim que esta Federação Internacional de Arte Revolucionária
Independente não passou de uma manobra política infeliz de quem já
estava isolado culturalmente. Aliás, faço questão de dizer, que fui
voto vencido no LANTERNA quanto ao primeiro item do artigo Condições
Históricas para uma Arte Revolucionária, publicado nesta semana, e
que compactua neste mesmo item claramente com o anacrônico e sempre
equivocado estado de espírito da FIARI.
Diante das ameaças da cultura de massa defendo que a expressão arte
proletária deve ser retomada desde já pelos artistas revolucionários.
Uma arte objetiva, precisa, sem devaneios e delírios de surrealismos
irresponsáveis. Por fim, devo informar aos leitores que este meu
artigo já é de conhecimento do corpo de colaboradores do LANTERNA, e
que não tenho receio quanto as discordâncias de companheiros, que já
devem estar a caminho. Ao debate.


José Ferroso

terça-feira, 16 de outubro de 2012

CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA:

Por maiores que sejam os esforços da chamada Indústria cultural para
reprimir nos indivíduos as suas potencialidades criativas, as
condições aterradoras de vida impostas pelo capitalismo global fazem
germinar contra a própria vontade da burguesia, uma sensibilidade
selvagem, ainda subterrânea, mas que explode com as cores violentas da
arte. Ainda que os meios de comunicação de massa procurem domesticar o
aparelho perceptivo, algumas manifestações nos âmbitos nacional e
internacional demonstram claramente que a verdadeira arte não
compactua com a presente sociedade. Sabendo que a liberdade da arte é
uma falácia dentro do sistema(a marginalização do artista que não faz
concessões ao capital, a cooptação de subculturas para servir ao
mercado e finalmente a violência policial do Estado diante de
intervenções artísticas, ilustram isso), se faz necessário que os
artistas revolucionários se organizem pelos seus próprios meios.
A intolerância da classe dominante frente aos artistas que
colocam a estética em seu território natural, isto é o da rebelião,
pode ser explicada hoje pelo ainda impreciso clima de contestação:
Pensemos por exemplo na recente prisão das integrantes da banda Pussy
Riot após um protesto na principal catedral de Moscou. Em outras
regiões da Europa e também dos EUA que enfrentam a crise econômica,
diversos protestos possuem uma inegavel força estética com canções,
cartazes, atos simbólicos, etc. Invoquemos ainda a Arte combativa
realizada no Egito de hoje: O rastro de fogo deixado por artistas como
Khaled Hafez e o falecido Ahmed Bassiouny torna-se luz contra as
formas de repressão no mundo atual. No caso brasileiro tenhamos em
mente as chamadas literatura periférica e literatura prisional que
juntas a produção cultural envolvendo grafite e Rap expressam de modo
autêntico as realidades de segmentos do proletariado. É importante
frisar que tais artistas brasileiros enfrentando diariamente as
injustiças sociais, criam a sua
própria cultura, dispensando assim a demagogia do intelectual
esquerdista de classe média(históricamente estas manifestações
desenvolvem uma distância considerável do proselitismo dos tempos dos
Centros Populares de Cultura dos anos sessenta, aonde o artista de
classe média criava uma imagem idealista dos trabalhadores e não os
trabalhadores criavam a sua própria imagem).
    Mas perante tudo isto quais seriam os rumos estéticos, políticos
para superar o presente estado de coisas? De que modo o protesto
artístico(presente por exemplo nas periferias das cidades brasileiras)
liga-se a necessária consciência política revolucionária da classe
trabalhadora? Como o conjunto  das experiências estéticas libertárias
do século passado é entendido(e aproveitado) pelos artistas atuais?
De que maneira(s) os artistas brasileiros e de outras nacionalidades
podem impulsionar suas criações para comunicar a necessidade de um
outro modelo de sociedade? Ao mesmo tempo em que saudamos os citados
exemplos(assim como muitos outros espalhados pelo mundo) gostaríamos
de dizer que os rumos para uma Arte Revolucionária envolvem em nossa
opinião as seguintes condições:

1- A defesa da liberdade absoluta no plano da expressão artística.
Experimentar livremente sem qualquer tipo de constrangimento externo
as diferentes possibilidades de linguagem. Este processo criativo só
pode se dar á luz das necessidades interiores de quem cria.

  2- Desmistificar o sentido acadêmico da palavra " artista " e estimular
entre a juventude e os trabalhadores a criação artística e literária
através de meios de produção culturais independentes.

3- Intensificar um processo de estudo, discussão e análise histórica das
tradições artísticas ligadas a crítica e ao questionamento da
sociedade burguesa.

4- Promover o debate acerca das diferentes orientações estéticas.

5- A criação de periódicos e espaços para circular uma produção
artística revolucionária.



                          CONSELHO EDITORIAL LANTERNA

PÃO!:






Kathe Kollwitz, 1924.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

ESTÉTICA E ANARQUIA




É no flamejar das bandeiras negras que o impulso criativo da arte também encontra um  modelo de rebelião contra o filisteu mundo burguês. O desejo pela liberdade absoluta e a presença da anarquia tem sido em grande parte os motores sem leis da arte moderna e contemporânea. No entanto se precisarmos historicamente as relações entre a produção artística e o pensamento político do anarquismo, nos deparamos com encontros e desencontros, paixão e desconfiança, atração e rejeição. A seguir nos limitaremos a fazer algumas citações históricas, sem evidentemente esgotar um assunto tão vasto e complexo.
Nesta aparente união histórica que acaba por revelar a imperiosa necessidade de uma “Estética libertária” , arte e anarquia traçam caminhos tortuosos entre si. Se algumas das experiências socialistas do século passado flagraram verdadeiros equívocos do ponto de vista estético e cultural em geral, podemos concluir que o  potencial revolucionário da arte foi mal compreendido tanto por marxistas vulgares (imersos no Realismo socialista) quanto por libertários sem conhecimento de causa.  
Em França durante a Belle Époque  (1880-1914) a essência libertária do anarquismo encontra uma franca sintonia estética com a pintura pós-impressionista e com a poesia simbolista. Muito mais do que a menção ao tema da luta revolucionária no conteúdo de telas e poemas, a identificação com a postura libertária estava na própria dinâmica interna da forma. Compenetrado subjetivamente na elaboração das formas da pintura ou do poema(em suas especificidades de linguagem), o artista identificado com a ideologia anarquista assumia a recusa contra qualquer forma de autoridade rompendo com os padrões clássicos e o racionalismo identificados ao gosto burguês.
É difícil precisar a que corrente anarquista estes artistas se identificavam, já que em termos políticos podemos falar em “ anarquismos “. Porém, esta identificação artística seria questionada por muitos militantes anarquistas devido a existência de algumas preocupações culturais no seio do movimento operário. Tais militantes pensam a arte num sentido contrário ao das experimentações estéticas da modernidade: Presa-se a arte engajada, de conteúdo social. Consideramos o engajamento indispensável : O artista a partir de sua visão comprometida com os problemas do seu tempo, usa a sua arte para comunicar aos  trabalhadores a necessidade de transformar a realidade. Entretanto ( e como sempre procuramos frisar em nossos textos) o caráter experimental, inovador, de ruptura formal é igualmente vital para qualquer modelo de arte combativa. 
Hostis aos artistas de vanguarda, anarquistas europeus procuram dar continuidade a tradição de uma arte com forte senso pedagógico. O preconceito frente ao artista rebelde e boêmio deve-se a um período de isolamento destes diante da realidade política: Após as jornadas de 1848, muitos artistas e intelectuais ficaram aterrorizados com a repressão policial. A não ser por poucos pintores e poetas engajados na emblemática centelha épica da Comuna de Paris de 1871(cabe nesta ocasião mencionar o empenho do pintor Courbet), um abismo de incertezas separava artistas e luta proletária .
Se em termos estéticos os anarquistas do final do século XIX e de boa parte do século XX demonstram uma postura rudimentar e sectária, é preciso acentuar a louvável preocupação destes com a educação e portanto com a formação intelectual dos operários. Neste sentido cabe citar o ex-sapateiro francês Jean Grave, as atividades teatrais dos anarquistas no Brasil e a produção cultural do anarquismo espanhol. Na Espanha durante o início do século XX encontramos uma sistemática educação anarquista nas chamadas CASAS DEL PUEBLO. Com a eclosão da Guerra civil (1936-39) contra a barbárie franquista, os anarquistas espanhóis irão acentuar a produção artística e educacional criando por exemplo uma autêntica cinematografia anarquista.
Tendo em mente esta cinematografia anarquista espanhola cabe agora uma rápida reflexão sobre a importância de um cinema realizado por e para militantes.Nem precisamos dizer o quanto isto é significativo do ponto de vista da História da Arte Revolucionária: O cinema pela sua natureza técnica é a linguagem artística estratégica do nosso tempo. O cinema pode mobilizar em larga escala a sensibilidade e desenvolver a consciência política numa direção multiplicadora. Mais significativo ainda é quando os operários estão com a câmera em punho, criando a sua própria cinematografia que testemunha sua luta histórica por libertação. No caso espanhol durante o início do século, o anarquismo aparece enquanto orientação ideológica e ferramenta de agitação e propaganda para um cinema que visa a mobilização popular. Tratam-se de filmes que embora excessivamente didáticos exalam um épico cheiro de pólvora contra a elite dominante. Gostaríamos assim de chamar a atenção das centrais sindicais de hoje em dia para este feito histórico: A CNT estava comprometida com uma produção cinematográfica revolucionária. E hoje em dia? Em meio ao bombardeio midiático que os trabalhadores recebem diariamente, quais estratégias o sindicalismo apresenta para combater no plano audiovisual a dominação da burguesia? Os anarquistas espanhóis da década de trinta por exemplo ensinam. Entretanto isto não quer dizer que tal cinema anarquista apresente maiores conquistas estéticas, aliás nem podemos falar em uma “ Estética anarquista “ (se é que isto é concebível). O que falta aos filmes do período é exatamente uma linguagem libertária(embora o conteúdo o seja).
Com o apocalipse moderno da primeira guerra mundial(1914-18), o sentimento anárquico encontra a sua expressão máxima no movimento Dada. A antiarte dos dadas expressa em inúmeras manifestações de caráter provocador, irracional e iconoclasta deu ao movimento uma dimensão anárquica sem paralelos na História. Sem dúvida uma rebelião que se encaixa perfeitamente em um programa anarquista para ações (anti) artísticas.
O desagradável odor da rebelião Dada surge em Zurique na Suíça e chega até as narinas burguesas da Alemanha em Berlim. Nesta última o Dada desenvolve a sua feição politizada em um profundo questionamento do sistema. Porém,  o Dada alemão divide-se entre adeptos do anarquismo e do marxismo. Tal divisão é compreensível já que os Partidos de esquerda passam a ocupar na Europa um espaço cada vez maior, enquanto que o anarquismo vai perdendo a sua força política.
Em Paris, se o Dada seria já em 1921 absorvido pela cultura dominante, é de dentro do seu útero niilista que nasce um movimento com maior consistência e aprofundamento filosófico: O Surrealismo. Este, inconciliável com a ordem capitalista, passara o período de 1925-45 politicamente identificado com o marxismo. Porém, a defesa radical da autonomia na produção artística em relação a qualquer órgão centralizado de poder, fez com que André Breton e seus amigos fossem marginalizados no interior do movimento comunista durante a era stalinista. 
Após o turbilhão da segunda guerra mundial(1939-45) os surrealistas franceses aproximam-se abertamente dos libertários. Aliás é verificável na trajetória política do Surrealismo uma  tensão não resolvida entre a bandeira vermelha e a bandeira negra.  Já no MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE  redigido no México em 1938 por Breton e Trotski(publicamos este documento aqui no LANTERNA), ambos não cessaram em apontar a necessidade de anarquistas e marxistas andarem de mãos dadas no plano da criação artística. Isto revela um ponto de vista de uma extrema atualidade(assim como uma série de outros pontos do manifesto) pelo fato de que a luta contra as formas de opressão social pressupõe a diversidade política e cultural.
Porém, durante a década de cinqüenta a aproximação dos surrealistas com a Federação anarquista francesa gerou desconforto. Ao escreverem no jornal da federação LE LIBERTERIE , autores surrealistas encontraram nos militantes anarquistas sérias reservas: No tocante a arte, estes últimos advogam por uma estética realista e pedagógica. Quer dizer, foram incapazes de compreender a Revolução subjetiva preconizada pelo Surrealismo e ironicamente a Federação aproxima sua posição estética com o stalinismo!
Da segunda metade do século XX para cá é crescente a identificação de artistas rebeldes com o anarquismo: Dos Letristas aos Enrangés do Maio de 68, do Punk rock dos anos setenta aos contestadores da atualidade. O que acabamos por observar sobretudo dos anos sessenta em diante é uma compreensão cada vez maior por parte dos artistas anarquistas da necessidade de estéticas anárquicas, livres, experimentais. Isto deve-se evidentemente a uma abertura considerável dentro do pensamento anarquista iniciada já na década de quarenta na Inglaterra. Tal abertura contempla uma atenção especial aos problemas da percepção, do comportamento, das formas cotidianas de resistência frente a uma sociedade cada vez mais baseada no controle e na opressão dos indivíduos. Neste contexto em que o anarquismo parece fundir-se a uma atmosfera de contracultura, importantes artistas e pensadores anarquistas desenvolveram pelo mundo manifestações que questionam a figura da autoridade e propõem uma arte que desafia os limites entre obra e vida. Pensemos por exemplo no artista francês Jean Dubuffet, nas idéias do crítico de arte inglês Herbert Read, no grupo teatral norte americano Living Theatre e no artista brasileiro Hélio Oiticica(um dos pais do tropicalismo), para apenas citar alguns nomes que pertencem a uma renovação estética dentro do pensamento anarquista moderno.
Este conjunto de experiências estéticas dentro da História do anarquismo certamente envolve um legado prático para os artistas de hoje. Julgamos que tal herança é vital para que tanto anarquistas quanto marxistas avancem nos debates estéticos(acreditamos que ambos possam trabalhar juntos). No entanto, aqueles que realmente se interessam pela postura libertária e pretendem vincula-la a sua própria produção artística, devem se encarregar que maus entendidos sejam historicamente superados.
                                                                                                                
                                             Afonso Machado / Orestes Toledo 

Baile Popular



                                                                                                      Di Cavalcanti, 1972.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

TRECHO DA CONFERÊNCIA " O AUTOR COMO PRODUTOR " , PRONUNCIADA POR WALTER BENJAMIN EM 1934




Um autor que não ensina nada aos escritores não ensina nada a ninguém. Assim, é
decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar,
levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um
aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar à
produção, numa palavra, quanto melhor for capaz de transformar os leitores ou
espectadores em colaboradores. Já possuímos um modelo deste género, mas só lhe
posso fazer aqui uma breve referência: trata-se do teatro épico de Brecht.
Continuam a escrever-se tragédias e óperas que dispõem aparentemente de um aparelho
cénico consagrado pela experiência, quando, na realidade, estas obras não fazem mais
do que fornecer um aparelho cénico caduco. “A falta de esclarecimento acerca da sua
situação, que reina entre músicos, escritores e críticos”, diz Brecht, “tem consequências
tremendas, que não são suficientemente tidas em conta. Pensando possuir um aparelho
que na realidade os possui, defendem um aparelho que já deixaram de controlar, que já
deixou de ser, como ainda julgam, um meio para os produtores, para se tornar um meio
contra os produtores”. E uma das razões principais por que este teatro de maquinarias
complicadas, de enorme aparato de figurantes, de efeitos refinados, se tornou um meio
contra os produtores, foi o facto de os tentar aliciar para a luta de uma concorrência sem
sentido, na qual o cinema e a rádio o enredaram. Este teatro – quer se trate do teatro
“sério”, quer do teatro de entretenimento: ambos são complementares, ambos se
completam um ao outro – é o teatro de uma camada social saturada, para a qual tudo
aquilo em que põe a mão se torna excitante. A sua causa é uma causa perdida. Não se
passa o mesmo com um teatro que, em vez de entrar em concorrência com aqueles
recentes instrumentos de publicação, os tenta aplicar e aprender com eles; numa palavra,
um teatro que procura entrar num confronto produtivo com esses instrumentos. O teatro
épico empenhou-se neste confronto. Comparado com o grau de desenvolvimento actual
do cinema e da rádio, é este o teatro do nosso tempo.
Com vista a tornar esse confronto positivo, Brecht voltou-se para os elementos
primitivos do teatro. Contentou-se, de certo modo, com um estrado. Renunciou a acções
de grande complexidade. E assim conseguiu transformar a relação funcional entre o
palco e o público, o texto e a representação, o encenador e o actor. Mais do que
desenvolver acções, o teatro épico deve, segundo Brecht, apresentar situações. Chega a
essas situações, como iremos ver, fazendo interromper as acções. Lembro aqui as
canções, cuja função principal é interromper a acção. Deste modo – recorrendo ao
princípio da interrupção - , o teatro épico retoma, como se vê, um processo que nos
últimos anos se nos tornou familiar através do cinema e da rádio, da imprensa e da
fotografia. Refiro-me ao processo da montagem: o elemento introduzido na montagem
interrompe o contexto em que está inserido. Mas permitam-me chamar brevemente a
vossa atenção para o facto de este processo ter aqui uma justificação especial, se não
mesmo a sua verdadeira justificação.
A interrupção da acção devido à qual Brecht designou de épico o seu teatro, impede
constantemente uma ilusão do público. Uma tal ilusão é, evidentemente, inútil para um
teatro que pretende tratar os elementos do real no sentido de uma série de experiências.
Mas é no fim e não no princípio desta experiência que se encontram as situações.
Situações que, sob esta ou aquela forma, são sempre as nossas situações. Não se procura
aproximá-las do espectador, mas sim distanciá-las dele. Ele reconhece-as como as
verdadeiras situações, não com presunção, como no teatro do naturalismo, mas com
espanto. O teatro épico não reproduz, pois, situações, antes as descobre. A descoberta
das situações processa-se através da interrupção do fio da acção. No entanto, a
interrupção não tem uma função de excitação, mas sim organizadora. Faz parar a acção
em curso, e com isso obriga o ouvinte a tomar posição perante o acontecimento, o actor
a tomar posição perante o seu papel. Vou mostrar-vos, com um exemplo, como a
descoberta e a elaboração do elemento gestual por Brecht não é mais do que uma nova
transformação dos métodos da montagem, decisivos na rádio e no cinema, que ele
reconverte fazendo de um procedimento muitas vezes apenas utilizado, porque está na
moda, um acontecimento humano. Imagine-se uma cena de família: a mulher está em
vias de pegar numa estatueta de bronze para a atirar à filha; o pai, a abrir a janela para
chamar por socorro. Nesse momento entra um estranho. A acção foi interrompida, o que
aparece em vez dela é a situação com que depara o olhar do estranho: caras
transtornadas, a janela aberta, móveis destruídos. Mas há um olhar perante o qual as
cenas mais banais da vida de hoje se apresentam de uma forma não muito diferente. É o
olhar do dramaturgo no teatro épico.
À obra dramática total ele contrapõe o laboratório dramático. Retoma de uma maneira
nova o velho grande trunfo do teatro: fazer sobressair e pôr à prova o que se está a
passar diante dos nossos olhos. No centro das suas experiências está o ser humano, o
homem de hoje: portanto, um ser humano limitado, neutralizado num meio hostil. Mas,
como não dispomos de outro homem, temos interesse em conhecê-lo. É submetido a
provas, a juízos de valor. O que daqui resulta é o seguinte: os acontecimentos não são
transformáveis no seu clímax, através da virtude e da decisão, mas apenas no seu
desenrolar estritamente habitual, através da razão e da prática. Construir, a partir dos
mais ínfimos elementos dos modos de comportamento, o que na dramaturgia aristotélica
se designa por “acção” – é este o sentido do teatro épico. Os seus meios são, pois, mais
modestos do que os do teatro tradicional; e também os seus objectivos. Pretende, não
tanto encher o público com sentimentos, mesmo que sejam os da revolta, mas antes
distanciá-lo de uma maneira duradoura, através da reflexão, das situações em que vive.
Diga-se, apenas de passagem, que não há melhor ponto de partida para a reflexão do
que o riso. E que a vibração do diafragma costuma ser um melhor estimulante do
pensamento do que as vibrações da alma. O teatro épico só é exuberante nas ocasiões de
riso que oferece.

Walter Benjamin, 1934.